Paulo Navarro | Entrevista com Sissa Aneleh


Entrevista com Sissa Aneleh. Foto: Izabela Laurico

Pará ou Paris?

Em “Querelas do Brasil” (1978), Elis Regina cantava que “o Brazil não conhece o Brasil. O Brasil nunca foi ao Brazil”. Podemos completar que o brasileiro não conhece o Brasil. Tudo muito longe, tudo muito caro. Principalmente de Minas para o Norte do país. Muitas vezes, é mais negócio ir para Paris, sem exagerar. Assim, o que os pobres mortais conhecem, por exemplo, de Belém, do Pará? Que é parte da Amazônia, que os belenenses têm sotaque carioca, que a cidade tem o famoso Mercado “Ver-o-Peso” – porque começou como uma estação fiscal para verificar o peso e taxar as mercadorias; que a Fafá é de Belém e a cidade abriga a não menos famosa manifestação “católica”, Círio de Nazaré. Mas agora, o Centro Cultural Banco do Brasil BH – CCBB/BH recebe a exposição “Vetores-Vertentes: Fotógrafas do Pará”: mais de 40 anos de produção fotográfica feminina na região Norte do Brasil, pelas lentes de 11 artistas da Amazônia Brasileira. Uma Amazônia que passa por Cuba e até Índia! Este e outros mistérios serão revelados pela curadora da mostra, Sissa Aneleh que, simpática e competentemente, teve a paciência de nos guiar pelo acervo com cerca de 170 obras - fotografias, fotonovelas, jornais artísticos, vídeos e áudios - de três gerações de fotógrafas amazônicas. Artistas das décadas de 80 e 90, até aquelas da década atual. Aqui e a seguir, Sissa ensina muito mais, provando que seria a guia turística perfeita para mineiros perdidos no espaço amazônico do Pará.

Sissa, você é belenense, do Pará, mas Aneleh vem de onde?

Aneleh é uma homenagem a minha mãe chamada Helena, mulher amazônica.

O Pará, a Amazônia, é outro Brasil?

O Estado do Pará é o mesmo Brasil e a Amazônia brasileira é a nossa maior riqueza. O país precisa reconhecer Belém do Pará, como importante região brasileira produtora de arte e de cultura originalmente brasileiras.

A exposição “Vetores – Vertentes: Fotógrafas do Pará” é um passaporte para este Brasil pouco conhecido dos brasileiros ou um cartão-postal?

Na minha direção artística e curadoria, a exposição foi criada para ser o reconhecimento dessa “História da Fotografia Brasileira” que inclui a região Norte, especialmente para que as pessoas conheçam a tradição artística e cultural que as mulheres impulsionam na região há décadas, apresentada neste recorte da produção direcionada às vertentes fotográficas. Para tanto, a exposição apresenta a mensagem clara de que os brasileiros e as brasileiras precisam se reconhecer e se valorizar. Esta exposição é apenas o começo de uma nova era no país de valorização definitiva da arte brasileira, começando pela fotografia feita pelas mulheres artistas.

A exposição cobre 40 anos. O Pará mudou muito durante este período?

Na minha pesquisa da tese de doutorado em artes que gerou esta exposição, explorei as décadas de produção fotográfica feminina, investigando o cenário artístico, social e cultural, encontrei um cenário completo para o desenvolvimento da arte fotográfica iniciado na década de 1970 - recorte inicial da pesquisa. Entrementes, avanço nesta exposição com o intuito de apresentar o capítulo da fotografia da arte brasileira que o “Museu das Mulheres” está escrevendo. A exposição cobre mais de 40 anos de produção fotográfica artística contemporânea contínua no Pará de 1980 a 2020, sendo que a fotografia comercial já estava presente há mais de um século em Belém - a qual resultou no cenário artístico fotográfico, décadas depois, impulsionado também por muitas mulheres artistas. Como outras grandes capitais do Brasil, o Pará desenvolveu seu cenário artístico e cultural ao longo das décadas analisadas com participação efetiva de mulheres, construiu equipamentos culturais e calendário próprios, tendo artistas em diversas áreas artísticas e produção da região. Portanto, tornou-se polo artístico do Norte do Brasil com legado autônomo e importante presença feminina. O diferencial do Pará está no desenvolvimento da visualidade amazônica que ocorreu com a colaboração monumental das mulheres. Para tanto, nesta exposição apresentamos o olhar feminino sobre essa ideia amazônica da contribuição feminina não explorada no período da década de 1980, mas agora, expando, apresentando as vertentes fotográficas e o novo conceito  de imaginário mágico amazônico - advindo de algumas fotografias exibidas. Ressalta-se no conjunto de fotografias apresentadas a valorização das mulheres regionais, defesa do território imagético próprio, autonomia estética local, construção da memória de sua própria história e exaltação dos valores da Amazônia, usada como suporte, tema, espaço e luta pela valorização das mulheres - elementos que estão presentes na exposição que traz a linguagem da arte fotográfica feminina bem consolidada no Estado do Pará.

Por que o nome, “Vetores e Vertentes”?

Vetores são os guias culturais e identidades amazônicas seculares que norteiam as temáticas que as artistas exploram na sua produção fotográfica. Vertentes são os tipos de fotografias que elas mais usam, sendo fotografia direta e fotografia subjetiva, como: a documental, a de viagem, o retrato, a foto-performance, aconceitual, a experimental e autorretrato. Por extensão, somam-se outras propostas fotográficas originais que tornam a fotografia híbrida, com desdobramentos em fotonovelas, jornais artísticos, completando-se em diálogos com as artes plásticas e o audiovisual.

Por que só mulheres, fotógrafas?

Chegou a hora de mostrar a nossa história, comecei pela arte fotográfica, mas tenho outros projetos que apresentam outras linguagens artísticas que as mulheres atuam e são pioneiras em sua jornada. Fato histórico é o reconhecimento dos homens fotógrafos da região ocultando a contribuição das mulheres. Em ato de reparação, apresento nesta exposição minha pesquisa de mais de 15 anos com gerações de fotógrafas que confirmam a existência da tradição fotográfica feminina no Pará. Apresento a história da fotografia feminina no Pará, apresentando um recorte com pioneiras e gerações de artistas seguintes que mostraram que há originalidade fotográfica feminina amazônica que se diferencia pela temática voltada para as mulheres na grande maioria das obras apresentadas. A missão do “Museu das Mulheres” com esse projeto é a valorização das mulheres brasileiras, neste projeto reafirmamos o legado histórico da fotografia feminina realizada no Norte do Brasil. Para tanto, apresentamos, em Minas, nosso primeiro projeto com itinerância nacional, agora no CCBB Belo Horizonte - maior centro cultural da cidade.

O tema principal é o Círio de Nazaré?

Não, o Círio é uma temática das artistas, principalmente por ser uma homenagem à Nossa Senhora de Nazaré, mulher tão importante para a “História das Mulheres” e para a “Amazônia Feminina”. Nesta constelação fotográfica, o tema geral é o universo amazônico e a importante representatividade feminina regional e local.

É mais que uma manifestação religiosa católica, um culto, uma procissão, certo?

Sim, é a representação da força das mulheres do Norte do Brasil.

A “festa” é também profana e entretenimento?

Não, o Círio de Nazaré é uma manifestação religiosa católica, uma culminação da fé amazônica que une os fiéis e admiradores de Maria. As outras festas, durante o Círio, são programações culturais e artísticas regionais que acontecem no mesmo período, sempre respeitando a imagem do Círio de Nazaré.

Por que ela tem fotos de Brasília, Cuba e Índia?

A exposição apresenta a vertente de fotografia direta e fotografia de viagem com foco em pessoas locais na Amazônia. Quando as artistas fotógrafas do Norte viajam para outros países, levam tais vertentes e o mesmo afeto fotográfico amazônico para os demais países e outros lugares do próprio Brasil. Portanto, a minha pesquisa de doutorado encontrou focos temáticos idênticos realizado no Norte do Brasil que permanecem na fotografia de viagem dentro ou fora da Amazônia.

E as fotógrafas? O que as difere, onde se encontram?

Todas as fotógrafas têm sua assinatura artística original pautada na construção de sua carreira inspirada pela Amazônia. Apresento três gerações de artistas com recorte preciso de pesquisa de arte com tempo de produção de mais de 40 anos de fotografia. É notável como as pioneiras mostraram o caminho da construção da estética fotográfica amazônica, depois adotada pelas demais gerações de fotógrafas que se inspiraram nesta primeira geração - atuante desde a década de 1970 e 1980. A nova geração de fotógrafas trilhou as mesmas temáticas da visualidade feminina amazônica, expandindo a arte fotográfica ao seu modo artístico de ser. Eis que surge a tradição fotográfica que a exposição traz nesta exposição. Em suma, a exposição “Vetores-Vertentes: Fotógrafas do Pará” é memória, documento e história que alcança a consolidação da tradição artística feminina regional.

Por que a exposição é dividida em três salas?

Cada sala apresenta um conjunto de vertentes fotográficas e temáticas que unem as três gerações de artistas fotógrafas. Temos a sala “P&B” que apresenta a historicidade da fotografia feminina; por conseguinte, a sala “Açaí”, com fotografias coloridas, que traz outra diversidade temática, além da parte sensorial da exposição com instalação aromática inspirada nas indígenas guerreiras Icamiabas e banhos de cheiro trazidos do “Ver-o-Peso”, assim oferecendo uma memória olfativa da Amazônia para o público. Na terceira sala, o experimentalismo amazônico apresenta fotografias conceituais, desdobramentos, experimentações, novas temáticas e a experiência da alquimia fotográfica da década de 1990. Todas as salas possuem interpretações temáticas e modelos das vertentes fotográficas regionais, também algumas temáticas das salas foram plasmadas na exposição, como as curandeiras históricas fotografadas nas salas “P&B” e “Açaí”. No pátio do CCBB/BH, a parte imersiva da exposição está no cenário ancestral da Oca, com exibição do meu filme em realidade virtual “MUKATHU’HARY” (Curandeira) que apresenta o ritual de cura feito por Maputyra Guajajara, curandeira indígena e guardiã da sabedoria ancestral feminina. Por fim, a exposição é uma grande homenagem as mulheres brasileiras amazônicas.

Quer fazer um convite aos mineiros para conhecer Belém e o enorme Pará?

Primeiro, visitem a exposição para levarem consigo, na memória, as obras fotográficas expostas e a experiência de viver este projeto antes de qualquer viagem ao Pará. Assim a memória visual e a memória olfativa da exposição estarão com vocês ao olharem com seus próprios olhos uma das regiões mais especiais do Brasil e do mundo. No Pará, vocês irão confirmar como as artistas nortistas têm afeto pelo território e porque elas fotografaram as humanidades locais, os povos da floresta, a diversidade cultural e os ícones femininos tão presentes. Ser mulher artista no Norte é lutar pela preservação da memória regional e valorização de seu território existencial. A exposição tem como um dos maiores objetivos o desenvolvimento de afeto pela região amazônica, nela há vida, arte e a força do feminino. Portanto, primeiro, a viagem por dentro da exposição que apresenta a inesquecível dimensão afetiva da “Amazônia Feminina”. Permitam-se serem tocados e tocadas pela força do feminino amazônico em forma de arte fotográfica.